Súmula 526 STJ - O reconhecimento de falta grave decorrente do cometimento de fato definido como crime doloso no cumprimento da pena prescinde do trânsito em julgado de sentença penal condenatória no processo penal instaurado para apuração do fato.

Autor: Marcel Figueiredo Gonçalves.

Comentários: esta é uma súmula que pode, e deveria, ser lida em conjunto com a súmula 533 STJ, que assim diz: para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento administrativo pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado.

Já estudada por nós, esta súmula 533 orienta que seja instaurado procedimento (com defesa) para o acusado de alguma falta disciplinar no âmbito da execução penal. Isto é, para que ele receba uma sanção administrativa, um procedimento deve ser instaurado e a ele deve ser dada a possibilidade de se defender.

Já a súmula 526 STJ, agora em estudo, diz que se a falta disciplinar cometida pelo condenado for um crime doloso, não haverá necessidade de se esperar o trânsito em julgado criminal para que se instaure o procedimento e se puna o sujeito administrativamente. Vamos explicar.

A Lei de Execução Penal (LEP) classifica as faltas disciplinares em leves, médias e graves. Assim diz seu art. 49: Art. 49. As faltas disciplinares classificam-se em leves, médias e graves (...). A própria LEP, então, traz regras a serem obedecidas durante o cumprimento da pena. Estão elas elencadas, especialmente, no art. 49 e seguintes desta lei, além de outros dispositivos legais. Por exemplo: comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina.

Outro tipo de falta grave que pode ser cometida pelo condenado ocorre quando ele pratica algum crime doloso. É o que diz o art. 52 LEP: Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave (...).

Então, se o sujeito, durante o cumprimento de sua pena, pratica um fato que é previsto em lei como crime, além de responder pelo crime que acaba de praticar, irá responder também por falta grave. Ou seja, irá responder criminalmente e administrativamente. Irá responder perante um Juiz de Direito e perante a autoridade administrativa. São duas instâncias independentes, a criminal e a administrativa, com sanções e fundamentos (razão de ser) distintos, logo, são ambas aplicáveis ao sujeito. Um mesmo fato com duas sanções distintas, sem problema. O princípio do "ne bis in idem" se refere à proibição de punição dupla para o mesmo fato, quando estas punições forem ambas de natureza criminal.

A súmula 526 vem dizer que para o sujeito ser condenado pela falta grave, não há necessidade de se esperar o processo criminal acabar. E por que haveria esta necessidade? Exatamente porque o art. 5º, LVII, da Constituição assim diz: LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Com base neste princípio (da presunção de inocência), muitos alegavam que deveria o processo criminal chegar ao fim para que contra ele pudesse ser instaurado o procedimento administrativo. Ora, se o sujeito ainda não foi condenado criminalmente, significa dizer que é ele inocente, então, como se pode instaurar o procedimento administrativo se o sujeito ainda não foi culpado? Em outros termos: qual a lógica de se iniciar um procedimento administrativo contra um inocente?

Todo procedimento é instaurado contra inocentes, claro, senão não haveria necessidade de um procedimento para averiguação da culpa. Neste procedimento, será dada possibilidade de contraditório e ampla defesa ao indivíduo, para que possa descaracterizar sua culpa administrativa. Assim, as garantias do devido processo legal estarão sim presentes, não havendo violação a elas.

A ideia de se esperar o processo criminal findar para que o resultado deste (especialmente se condenatório) possa influir no resultado do processo administrativo também não procede. Como dissemos, trata-se de instâncias diferentes, autônomas. Se o indivíduo ainda é inocente na seara criminal, nada impediria que ele seja culpado na seara administrativa. Por mais estranho e paradoxal que possa parecer, este raciocínio é válido. Isso porque a lógica e os fundamentos (razões de ser) da condenação administrativa são diferentes da lógica e fundamentos da condenação criminal. Num processo criminal, a culpa do indivíduo deve ser cabal, pois se está diante do tolhimento de bens fundamentais, da constatação de uma culpa grave. Não pode o juiz criminal se contentar com indícios e provas que não os convença peremptoriamente da culpa do sujeito. Já na seara administrativa, alguns indícios já bastariam para a condenação, uma vez que em âmbito administrativo (mesmo na execução criminal), haverá não o tolhimento de bens fundamentais, não a constatação da culpa criminal do sujeito, mas sim o agravamento de uma situação já definida.

Em resumo:

  • A LEP traz as faltas disciplinares graves e as respectivas sanções a serem aplicadas contra quem as praticar.
  • Uma das formas de se cometer falta grave é pela prática de crime doloso, quando, neste caso, o sujeito irá responder criminal e administrativamente.
  • As instâncias administrativa e criminal são independentes, com razões e fundamentos distintos, logo, poderá haver a condenação administrativa e absolvição criminal, sem qualquer contradição, isto é, não é necessário haver culpa criminal para que haja culpa administrativa.
  • Grande parte dos atos reprováveis praticados pelos condenados são já previstos como crimes na legislação (tudo é crime no Brasil), logo, vincular o procedimento administrativo ao trânsito em julgado do processo penal seria engessar em demasia a disciplina e ordem necessárias quando do cumprimento da pena.

Por tudo isso que existe a súmula 526 STJ: o reconhecimento de falta grave decorrente do cometimento de fato definido como crime doloso no cumprimento da pena prescinde (dispensa) do trânsito em julgado de sentença penal condenatória no processo penal instaurado para apuração do fato.

Por fim, importante ressaltar que: caso o processo penal que apura o crime doloso se encerre (o que seria raro) antes da apuração do processo administrativo, seja ele utilizado neste último para fins de constatação da autoria e materialidade do fato. Em outros termos: a absolvição no processo criminal não obsta a condenação no procedimento administrativo (salvo motivos específicos da absolvição); já a condenação no processo criminal provará a autoria e materialidade também no processo administrativo, uma vez que, como dito, o processo criminal é mais rigoroso na constatação da autoria e materialidade, logo, uma vez ali constatada também o estará para o processo administrativo. Seria uma espécie de exceção à ideia de autonomia das instâncias. Sobre isso, veja o RE 776.823/RS:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSO PENAL. REPERCUSSÃO GERAL. TEMA DE REPERCUSSÃO GERAL 758: NECESSIDADE DE CONDENAÇÃO COM TRÂNSITO EM JULGADO PARA SE CONSIDERAR COMO FALTA GRAVE, NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO CARCERÁRIO, A PRÁTICA DE FATO DEFINIDO COMO CRIME DOLOSO. ARTS. 52, CAPUT, E 118, I, DA LEI DE EXECUÇÃO PENAL. CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO (ART. 97 DA CF). PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (ART. 5º, LVII, DA CF). PRECEDENTES DO STF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. 1. Os arts. 52, caput, e 118, inciso I, da Lei de Execução Penal, por regerem esfera distinta da formação de culpa no processo penal de conhecimento, não são incompatíveis com a norma inscrita no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Dessa forma, descabe condicionar o reconhecimento da sanção administrativo-disciplinar de falta grave consistente na prática de fato definido como crime doloso pelo Juízo da Execução Penal ao trânsito em julgado da condenação oriunda do Juízo de Conhecimento. Independência das esferas de apuração e sancionamento de atos ilícitos. Juízes com competências diversas. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. 2. A apuração da falta grave, todavia, deve observar os postulados constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, assegurado ao sentenciado defesa técnica e possibilidade de produção de provas. Tema de repercussão geral 941. Regras de Nelson Mandela das Nações Unidas. 3. Não se reconhece violação à cláusula de reserva de plenário quando o órgão fracionário do Tribunal de origem deixa de aplicar dispositivo infraconstitucional sem que o tenha declarado, expressa ou implicitamente, a inconstitucionalidade. 4. Recurso extraordinário a que se dá provimento, com a fixação da seguinte tese: o reconhecimento de falta grave consistente na prática de fato definido como crime doloso no curso da execução penal dispensa o trânsito em julgado da condenação criminal no juízo do conhecimento, desde que a apuração do ilícito disciplinar ocorra com observância do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, podendo a instrução em sede executiva ser suprida por sentença criminal condenatória que verse sobre a materialidade, a autoria e as circunstâncias do crime correspondente à falta grave.