Súmula 542 STJ - A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada.

Autor: Marcel Figueiredo Gonçalves.

Comentários: a lei 9099/95, em sua parte criminal, cuida dos crimes que considera como de menor potencial ofensivo e das contravenções penais, trazendo os procedimentos para sua apuração.

No art. 88 traz a seguinte redação: Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.

O artigo diz que, no caso de ocorrência de uma lesão corporal de natureza leve (são aquelas que não são tidas como graves ou gravíssimas pelo Código Penal) ou praticada de forma culposa (sem o dolo, intenção de praticar o crime), haverá a necessidade de uma representação do ofendido (vítima) requerendo que seja feita a denúncia contra o agressor. Tem-se, portanto, um caso de ação penal pública condicionada à representação do ofendido. Apenas com esta representação poderá o Ministério Público denunciar. Isso porque é um caso, segundo consideração política do legislador, de menor importância social, que não afeta o interesse público de forma muito relevante e, por isso, dá à vítima a possibilidade de querer levar a denúncia pública adiante ou não.

Nos casos em que o Ministério Público pode atuar de ofício (pode denunciar livremente, quando tem a notícia de um crime), estamos diante da chamada "ação penal pública incondicionada". Como o próprio nome sugere, não há alguma condição especial (para além da existência do crime e suspeita de autoria, evidentemente) para que seja feita a denúncia. Soube do crime, tem os fatos e provas em mãos, pronto, pode o Promotor de Justiça fazer sua denúncia contra o autor. São para os casos graves que, em tese, afetam a sociedade em geral, como uma lesão grave, homicídio, estupro, corrupção etc. Esta é a regra de nosso ordenamento. Isto é: todo crime será de ação penal pública incondicionada. Quando houver alguma condição especial (como o caso da representação do ofendido), a lei deverá o dizer de forma expressa. Se nada disser, pronto, aquele crime é de ação penal pública incondicionada.

No caso do art. 88 da lei 9099, há a previsão expressa no sentido de que toda lesão leve ou culposa dependerá de representação da vítima, ou seja, são crimes de ação penal pública condicionada à representação.

E em que estes comentários se relacionam com a súmula em análise?

O problema surge por conta de duas previsões existentes na Lei Maria da Penha (lei 11.340/06), os artigos 16 e 41 desta lei, que assim dizem:

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

Não se preocupe o leitor com outros assuntos de que trata o art. 16. Apenas nos foquemos no seguinte ponto: o art. 41 diz que a lei 9099 não é aplicável ao crime cometido em contexto de violência doméstica contra a mulher. Logo, a ideia de que o crime de lesão leve ou culposa seriam condicionados à representação da vítima não valeria aqui no contexto doméstico contra a mulher.

Entretanto, há o artigo 16 acima. Este artigo, independentemente das demais questões que traga, admite que haja ações penais públicas condicionadas à representação da vítima, ainda que no contexto de violência doméstica contra a mulher. Eis o problema: diversas foram as teses e decisões no Superior Tribunal de Justiça quanto aos crimes de leão leve e culposa, (a) ora alegando que a ação seria incondicionada, (b) ora alegando que a ação deveria vir acompanhada da representação da vítima.

Já se entendeu que deveria ser deixada à mulher a decisão de levar adiante ou não a denúncia contra o seu agressor, pois, caso contrário, estaríamos retirando do casal (e da mulher, especialmente) a opção de se reconciliar e de seguir adiante, com sua liberdade de escolha. Entretanto, por conta de julgamento da ADI 4.424, do Supremo Tribunal Federal, o STJ foi obrigado a rever seu posicionamento, o que o fez editar a súmula em pauta. A ideia que prevaleceu no citado julgamento do STF foi no sentido de que, em nossas palavras, "considerar a liberdade da mulher em situações em que dela é exatamente tolhida a liberdade de ser e pensar, é o mesmo que desconsiderar o contexto histórico e empírico das violências domésticas". Em outros termos: a mulher, quando está neste contexto, tem sua liberdade tolhida e, assim, dificilmente faria uma representação contra o marido ou, quando o fizesse, depois poderia ser obrigada (por ele, o agressor) a voltar atrás, hipótese permitida pelo art. 16 da Lei Maria da Penha.

Por conta de se considerar esta realidade do contexto empírico da violência doméstica é que se preferiu firmar o entendimento de que, para casos de lesões contra a mulher, em âmbito doméstico, a ação não dependerá de representação da mesma, ou seja, será pública incondicionada.

E este raciocínio, segundo a ADI 4.424, seria válido tanto para a lesão leve como culposa. A súmula em pauta parece também não fazer distinção, ou seja, tanto para lesão leve como culposa haveria a ação penal pública incondicionada. Dada a natureza super protetiva da Lei Maria da Penha, uma interpretação histórica e teleológica da mesma também nos levaria a defender esta tese, que é a aceita atualmente, apesar de vozes em contrário.

O que o leitor pode indagar, em princípio, seria o de como visualizar uma situação de lesão culposa que seja de natureza de "violência doméstica", uma vez que esta violência pressupõe, em princípio, a existência de dolo. A complexidade é grande e as variáveis são inúmeras, devendo-se analisar sempre cada caso concreto para se chegar a uma conclusão, não havendo possibilidade de se inferir teses abstratas. Num contexto em que o Magistrado perceba a existência de tratamento inadequado constante à vítima, uma lesão culposa pode sim ser tida como violência doméstica, aplicando-se a regra da súmula em pauta.