Primeiras Linhas Sobre o Crime de Perseguição (Stalking)

25/11/2021

Autor: Marcel Figueiredo Gonçalves.

Categoria: artigo.

Local de publicação: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (v. 347, p. 15-16, 2021).


Resumo: O crime de perseguição foi introduzido no Brasil pela recente lei 14.132/21. Já tipificado em diversas legislações do mundo, como em Portugal, trata-se de crime que atinge a liberdade pessoal do indivíduo. Possui ele algumas particularidades que fogem ao senso comum e que, por isso, merecem a atenção da doutrina. Questões classificatórias podem ser - e o são neste caso - decisivas para a adequada subsunção da conduta, assim como é decisiva a leitura sistemática do tratamento dado pelo legislador para o melhor entendimento do assunto.

Palavras-chave: perseguição - stalking - habitualidade - abolitio criminis - perturbação da tranquilidade.

Abstract: Stalking was introduced as a crime in Brazil by a recent law, numbered 14.132/21. Already existing in several criminal law systems around the world, as in Portugal, it is a crime that affects the personal freedom of the individual. It has some singularities that are beyond common sense and that, for this reason, deserve the attention of the doctrine. Classification issues can be - and really are, in this case - decisive for the adequate subsumption of this crime, as well as the systematic reading of the treatment given by the legislator is decisive for a better understanding of the subject.

Keywords: persecution - stalking - habitually - abolitio criminis - disturbance of tranquility.

O crime de perseguição (em inglês, stalking) consiste na conduta comissiva e persecutória de um agente, amedrontando, perturbando ou ameaçando uma vítima, de forma constante e reiterada, sendo esta conduta idônea para causar temor, angústia, aflição, medo, insegurança ou pavor no ofendido.

Já tipificado em diversas legislações do mundo, como em Portugal, trata-se de crime que visa atingir a liberdade pessoal da vítima. Este é o bem jurídico-penal tutelado pela recente previsão legislativa. O crime de perseguição foi introduzido no Brasil pela lei 14.132/21, com o art. 147-A CP que, para além de tipificar o referido delito, revogou o art. 65 da lei das contravenções penais, que previa a contravenção de perturbação da tranquilidade: "Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável: Pena - prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis".

Era esta a tipificação encontrada pelo Judiciário quando se deparava com um caso de perseguição. Hoje, não mais o pode fazer, em vista da revogação ocorrida. E, por evidente, apenas os novos casos (de 1º de abril de 2021 em diante) é que terão a aplicação do art. 147-A CP (irretroatividade da lei penal pior).

Não nos parece adequado, inicialmente, defendermos a aplicação do princípio da continuidade normativo-típica nesta situação. Por tal princípio, mesmo após a revogação de determinado dispositivo legal, há a manutenção do caráter proibitivo da conduta (mas, com o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal), fazendo com que se possa continuar processando ou punindo aqueles que já o estavam sendo pelo tipo penal revogado (no caso, o art. 65 da lei das contravenções penais). Veremos que a nova conduta, do art. 147-A CP, exige uma habitualidade que não era exigida no art. 65 da lei das contravenções, portanto, trata-se de conduta diferente, em sua essência, daquela prevista no revogado dispositivo. O legislador está criminalizando conduta diversa daquela que - por falta de norma específica e adequada - era usada para se subsumir a estes casos de perseguição.

A depender de certos casos concretos, por evidente que a subsunção de uma ocorrência poderia se dar tanto para o revogado art. 65 como para o atual art. 147-A CP. Contudo, em princípio, seriam tipos de subsunções distintas: a conduta seria subsumida como crime único ao crime de perseguição (art. 147-A) e o seria em concurso para a contravenção penal (art. 65 LCP), uma vez que esta última se contentava com uma única prática da conduta para a sua consumação (apesar de alguns julgados exigirem a repetição). Não obstante tal diferença, a essência do atual tipo penal continua fazendo presente o antigo injusto do revogado art. 65, única e exclusivamente naqueles casos em que tenha havido a habitualidade da conduta. Para estes, portanto, há continuidade normativo-típica. Em suma: preferimos dar uma interpretação mais favorável àqueles que estejam respondendo ou foram condenados pelo art. 65 da Lei de Contravenções, defendendo a abolitio criminis para estes casos como regra, e, apenas excepcionalmente, a continuidade normativo-típica para os casos que foram cometidos com habitualidade[1].

Passemos estritamente aos comentários a este novo tipo penal.

O crime de perseguição é um crime de ação vinculada. Isso significa dizer que, para a sua consumação, o agente há de praticar a conduta exatamente como previsto no tipo penal, isto é, se praticar a perseguição de outra forma que não uma das previstas no citado artigo, o fato será atípico ou se subsumirá em outro crime. Por outro lado, se praticada a conduta em mais de um de seus núcleos, estaremos diante de crime único (uma vez que se trata também de crime de conteúdo variado). Mas quais seriam as formas de cometimento da perseguição criminosa que a torna um crime de ação vinculada? São elas:

  • Ameaçar a integridade física ou psicológica da vítima - o agente ameaça lesionar ou matar a vítima (ameaça à integridade física) ou comete atos que perturbam a sua paz e tranquilidade (ameaça psicológica), como o caso de chantagear a ex-mulher dizendo que irá publicar suas fotos íntimas, tiradas quando da constância do casamento, dentre outras hipóteses.
  • Restringir a capacidade de locomoção - é o caso do agente que fura os pneus do veículo da vítima, desaparece com as chaves de seu carro para não se encontrar com o atual companheiro etc.
  • Invadir ou perturbar a esfera de liberdade ou privacidade da vítima - esta é a forma mais ampla prevista para o cometimento deste crime. É o caso concreto que dirá quando que terá ocorrido a perturbação ou invasão da liberdade ou vida privada. Exemplos hipotéticos seriam o caso de o agente acessar o e-mail da vítima (pois possui a senha), assim como a entrada clandestina na casa da vítima (pois o agente ainda possui a chave, já que é seu ex-companheiro), dentre outras situações.

Percebe-se que os exemplos são, propositalmente, referentes à violência doméstica sofrida pela mulher, pois é especialmente neste cenário (mas não exclusivamente) que se justifica a intervenção penal mais drástica. Afinal, intervir minimamente não significa ausência de intervenção, sendo legítima, necessária e útil a intervenção penal neste caso. Não há que se confundir: a defesa do Direito Penal como tendo que ser o último meio de solução de conflitos sociais se coaduna com a função de prevenção dada ao Direito Penal. Não prevenção pela prevenção, não defesa do ordenamento pelo ordenamento, mas sim prevenção na medida e nos limites da proteção de bens jurídico-penais fundamentais[2].

A relevância da perseguição pode ser constatada sob dois aspectos: a) a relevância da perseguição por si só; b) a relevância da perseguição como antecessora de um crime mais grave a ocorrer. Nesta última hipótese, a importância da criminalização é evidente, pois, da perseguição, crimes mais graves (como lesões e homicídios) podem ocorrer e ocorrem. Já sob o primeiro aspecto, fiquemos com as palavras de MACKENZIE, McEWAN, PATHÉ, JAMES, OGLOFF e MULLEN, que há mais de 25 anos lidam com o tema. Para este grupo de Psicólogos e Psiquiatras, as vítimas:

sofrem uma ampla gama de efeitos psicológicos, físicos, ocupacionais, sociais e de estilo de vida em geral como consequência de serem perseguidas. Como acontece em tantos aspectos do stalking, a experiência e o impacto podem variar muito entre as vítimas, com comportamentos que podem ser considerados irritantes para uma vítima e podem ter um efeito destruidor em outra[3].

Não obstante o tipo penal trazer as formas pelas quais o agente criminoso deverá atuar para que haja a subsunção, o legislador diz que estas condutas acima poderão ser praticadas por quaisquer meios ou por qualquer forma. Aqui também não há que se confundir: a lei exige sim condutas determinadas para que ocorra a perseguição (crime de ação vinculada), contudo, estamos diante de ações vinculadas que são, elas mesmas, livres nos meios de prática. Isto é: a perseguição é vinculada; mas a conduta que a caracterizará poderá ser praticada por qualquer meio ou forma. Assim, por exemplo, uma das formas (obrigatórias) de se cometer o stalking é por ameaças, mas, como o agente irá fazer esta ameaça (se por meio virtual, por escritos, presencialmente) não importa, haverá a tipificação da conduta em qualquer destes casos. Em tempos de redes sociais virtuais cada vez mais frequentadas, acertou o legislador em prever a possibilidade da prática do cyberstalking (perseguição em meio virtual)[4].

Além disso, estamos diante do chamado crime habitual, ou seja, estas condutas vinculadas deverão ser praticadas de forma reiterada. Caberá ao juiz, em cada caso concreto, avaliar se houve ou não a reiteração da conduta. A lei não exige um número objetivo mínimo para a configuração da reiteração, não obstante, é certo que uma única conduta, por evidente, jamais poderá configurar o crime em pauta, podendo a ação do agente se enquadrar, nesta hipótese, em outro tipo penal, diverso do stalking, ou ser um fato atípico.

Por ser crime habitual, não vislumbramos a possibilidade de se punir a forma tentada (ao menos em termos empíricos), como é aceito, por exemplo, no Código Penal de Portugal[5]. Ora, se, para a consumação é exigida a reiteração de condutas, a forma tentada se vê prejudicada em sua possibilidade empírica. Em outros termos, ou o agente reitera as condutas consumando o crime, ou o agente não as reitera, não praticando o mesmo.

Uma possível forma de se pensar a viabilidade da tentativa seria admitindo que a consumação do crime em pauta dependa de a vítima ter se sentido, faticamente, amedrontada ou ameaçada com a perseguição. Contudo, assim como ocorre no crime de ameaça (de onde o crime de stalking é topologicamente derivado), aqui no crime de perseguição também não se exige qualquer sentimento da vítima para a consumação do crime. Basta que as condutas do agente sejam idôneas para ameaçar a integridade, restringir a locomoção ou invadir ou perturbar a intimidade. Trata-se de crime formal, portanto.

Além disso, perceba o leitor o que diz o §3º do tipo em pauta: "§ 3º Somente se procede mediante representação". Qual seria a relação de uma norma procedimental com a possibilidade de se punir a forma tentada? Absolutamente toda. Sendo o crime de ação condicionada à representação, a discussão sobre se ter causado ou não a intimidação na vítima até mesmo se esvai, pois, ora, quem faria uma representação se não se sentiu amedrontado? Não há qualquer possibilidade de se fazer uma representação por stalking sem que exista, ainda que remotamente, algum tipo de medo na vítima. Por uma interpretação sistemática, portanto, conclui-se que não se exige a verificação de qualquer sentimento vivenciado pela vítima, para fins de consumação deste crime, uma vez que isso já é presumido na própria representação feita. Em outros termos: a representação feita pela vítima pressupõe o seu medo. Assim sendo, admitir a tentativa por conta da exigência de resultado naturalístico nos sentimentos da vítima não nos parece o mais acertado[6].

Com estas informações em mãos, já estamos aptos a ler e entender o tipo penal em estudo:

Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Por ter pena máxima abstrata igual a 2 anos, a competência para julgamento será dos Juizados Especiais Criminais, salvo se ocorrer qualquer causa de aumento prevista no respectivo parágrafo primeiro. Quais são estas causas que aumentam a pena? O parágrafo primeiro é autoexplicativo neste sentido:

§ 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido:

I - contra criança, adolescente ou idoso;

II - contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;

III - mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma[7].

Para além destes aumentos, também poderá o agente responder por eventuais agressões que tenha praticado. Então, exemplificando, se, ao restringir a liberdade de locomoção da vítima, o agente tenha se utilizado de violência física, responderá também (se for o caso) pelo crime de lesão corporal que praticara. É o que diz o §2º do artigo em pauta: "§ 2º As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência".

São estas as primeiras considerações a serem feitas sobre esta criminalização recém aprovada no Brasil.

BIBLIOGRAFIA:

COX, Cassie. Protecting Victims of Cyberstalking, Cyberharassment, and Online Impersonation Through Prosecutions And Effective Laws. Jurimetrics, New York (EUA), vol. 54, n. 3, 2014.

FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da doutrina penal; sobre a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

Hazelwood, Steven. D; Koon-Magnin, Sarah. Cyber Stalking and Cyber Harassment Legislation in the United States: A Qualitative Analysis. International Journal of Cyber Criminology, Vol 7, Issue 2, July - December 2013.

MACKENZIE, Rachel; McEWAN, Troy; PATHÉ, Michele; JAMES, David; OGLOFF, James; MULLEN, Paul. Impact of stalking on victims. In: https://www.stalkingriskprofile.com/victim-support/impact-of-stalking-on-victims. Acesso em 19/05/21.

REFERÊNCIAS:

[1] Sob outro enfoque, podemos afirmar que houve uma obediência à intervenção mínima do Direito Penal, uma vez que a conduta passa a ser relevante apenas quando praticada de forma reiterada, não mais o sendo quando praticada de forma isolada. E isso mesmo considerando que a anterior conduta era prevista apenas como contravenção penal e que fora introduzida em contexto histórico distinto, pois defendemos que, de fato e realmente, tenhamos um enxugamento máximo e uma intervenção verdadeiramente mínima de toda e qualquer intervenção estatal que seja acompanhada da nomenclatura "criminal" ou "penal".

[2] Contrapondo-se às perspectivas positivista-legalista, positivista sociológica e perspectiva moral, a perspectiva teleológico-funcional e racional é a que traz o conceito de crime que alcança o limite esperado, num contexto democrático, ao poder de punir estatal. Conforme FIGUEIREDO DIAS: "De teleológico-funcional, na medida em que se reconheceu definitivamente que o conceito material de crime não podia ser deduzido das ideias vigentes a se em qualquer ordem extra-jurídica e extra-penal, mas tinha de ser encontrado no horizonte de compreensão imposto ou permitido pela própria função que ao direito penal se adscrevesse no sistema jurídico-social. De racional, na medida em que o conceito material de crime vem assim a resultar da função do direito penal de tutela subsidiária (ou de 'ultima ratio') de bens jurídicos dotados de dignidade penal (de 'bens jurídico-penais'); ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena. Bens jurídicos nos quais afinal se concretiza jurídico-penalmente, em último termo, a noção sociológica fluida da danosidade ou da ofensividade sociais supra aludida". FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da doutrina penal; sobre a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 42 e 43. Sobre a relação das funções preventivas da pena com o conceito material de crime, e a inseparável relação daquelas com a proteção de bens jurídico-penais, esta mesma obra trata nas páginas 104 e seguintes.

[3] MACKENZIE, Rachel; McEWAN, Troy; PATHÉ, Michele; JAMES, David; OGLOFF, James; MULLEN, Paul. Impact of stalking on victims. In: https://www.stalkingriskprofile.com/victim-support/impact-of-stalking-on-victims. Acesso em 19/05/21.

[4] Sabido é que uma das grandes dificuldades na criminalização de condutas que ocorrem em meio virtual é a conceituação de termos referentes à Tecnologia da Informação em âmbito legal, assim como a delimitação do alcance de tais conceitos quando da subsunção do fato à norma. Sobre esta e outras dificuldades: COX, Cassie. Protecting Victims of Cyberstalking, Cyberharassment, and Online Impersonation Through Prosecutions And Effective Laws. Jurimetrics, New York (EUA), vol. 54, n. 3, 2014, pp. 277-302. Hazelwood, Steven. D; Koon-Magnin, Sarah. Cyber Stalking and Cyber Harassment. Legislation in the United States: A Qualitative Analysis. International Journal of Cyber Criminology, Vol 7, Issue 2, July - December 2013.

[5] Assim diz o art. 154-A do Código Penal português: 1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.2 - A tentativa é punível...

[6] E esta conclusão não retira a caracterização deste crime como "formal". A classificação como crime formal diz que um resultado naturalístico não é exigido como condição para consumação. Nada impede que este resultado, contudo, acabe por estar sempre presente, em decorrência - até mesmo lógica - da norma procedimental acima vista.

[7] Criança é toda pessoa de até 12 anos incompletos. Adolescente é toda pessoa entre 12 anos completos e 18 anos incompletos. Idoso é toda pessoa que tenha idade igual ou superior a 60 anos. Conforme art. 2º, "caput" da lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e art. 1º da lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso). Quanto à condição do sexo feminino, assim diz o §2º-A do art. 121 CP: § 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Por fim, observe-se que não se exige presença de arma de fogo, qualquer arma branca utilizada já configurará o aumento em pauta.