Que tipo de crime é julgado no Júri? Por que o latrocínio não é?

20/08/2021

A pergunta é imediatamente respondida com o art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição, que assim diz:

XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;

c) a soberania dos veredictos;

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

O que nos importa, neste momento, é apenas a alínea "d" deste inciso: a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Pronto, é isso que o Tribunal do Júri pode julgar, os crimes dolosos (intencionais) contra a vida.

Vamos apenas dar uns toques sobre este tipo de julgamento, antes de entrarmos com mais detalhes nos crimes ali julgados.

O Júri é, realmente, um cenário ideal para tensão, polêmicas e muito, mas muito mesmo, debate. É da essência do Júri o debate, pois acusação (Promotor de Justiça) e defesa (Advogado particular ou Defensor Público) possuem horas para apresentarem suas razões. Claro, estão ali para convencerem pessoas leigas (os jurados) de suas teses, daí a necessidade de uma apresentação longa e detalhada. Por isso ser comum haver julgamentos que atravessam as madrugadas.

Jurados se emocionando, Advogados e Promotores brigando, e Juízes descabelados tentando controlar tudo. Neste teatro espetacular, até a comédia, às vezes, se faz presente. É campo muito fértil, então, para a exploração fictícia da literatura e do cinema. Por isso que há diversos e bem-sucedidos filmes e livros que possuem este enredo. E, infelizmente, também é campo fértil para exploração de uma parte da imprensa (a dita "sensacionalista"), exploradora da desgraça alheia, que não tem o intuito de informar, mas, tão somente, o de manter o espectador desperto e ansioso para o próximo capítulo da "novela".

Também é da essência do Júri o réu ser julgado por pessoas a ele semelhantes (seus "pares"), no sentido de não ter seu destino decidido por um técnico do Direito. Isso mesmo, quem julga, quem decide no Júri são os jurados, e não o Juiz de Direito, que também se faz presente por ali. Ora, para que serve, então, o Juiz no Tribunal do Júri? Ele é o presidente do processo, é ele quem faz a gestão de todo o processo, dá ordens, concede a palavra para um ou outro se manifestar, exige silêncio, organiza a sequência dos atos etc. É o dono da casa, faz tudo, menos julgar.

A este poder dado aos jurados se chama "soberania dos veredictos", ou seja, no Júri, o julgamento soberano é dos jurados (são eles que dão a última palavra), por meio de seus votos secretos. O resultado destes votos, culpando ou inocentando o réu, é chamado "veredicto".

Assim que findos os debates e toda a produção das provas (testemunhas foram ouvidas, a arma do crime foi mostrada, os peritos se manifestaram, Advogado e Promotor já debateram etc.), os jurados (que são em número de sete) se dirigem a uma sala secreta, onde serão perguntados sobre o que viram em Plenário (local onde ocorreram os debates e a produção das provas). A eles são feitos os chamados "quesitos", que nada mais são que perguntas relativas ao que foi trazido tanto pela acusação como pela defesa. Exemplos de perguntas: "foi o réu quem matou a vítima?"; "o réu estava em legítima defesa?". Cada jurado vai respondendo "sim" ou "não", sem se identificar (sigilo das votações, para que julgue com mais liberdade, sem medo), sem dizer suas razões, tudo colocado numa urna. A maioria (quatro votos) vence e pronto, o réu será culpado ou inocente.

Mas será culpado ou inocente em relação a que tipo de crime? Nos filmes e livros fictícios a que nos referimos, o leitor poderá encontrar muitos casos que, especialmente nos Estados Unidos, são julgados pelo Júri, mas que aqui não seriam. Como dito, aqui os jurados julgam apenas os crimes dolosos contra a vida. De cara, você já pode eliminar o corriqueiro crime de homicídio culposo no trânsito. Aquele sujeito que, dirigindo em alta velocidade, atropelou e matou, sem intenção, uma vítima, não será julgado no Júri, mas sim num juízo criminal comum, competente para os crimes de trânsito. Este e qualquer outro tipo de homicídio culposo não serão, jamais, julgados no Júri.

Além disso, é importante saber que "crimes dolosos contra a vida" não abrange apenas o homicídio. O Código Penal, nos artigos 121 a 128, traz todos os crimes dolosos contra a vida existentes. São eles:

  • Homicídio - e aqui entram todas as subclassificações comuns em noticiários, como "homicídio qualificado", "homicídio privilegiado", "feminicídio" (morte da mulher por razões de gênero, ou seja, por ser mulher) etc.;
  • Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio - isso mesmo, se você induz alguém a se matar e esta pessoa tenta o suicídio, você vai a Júri popular, vai ser julgado pelos jurados;
  • Infanticídio - crime praticado pela mãe, logo após o parto, influenciada pelo estado puerperal (estado psicológico alterado da mulher em período de parto e/ou logo após), matando seu próprio filho;
  • Aborto - crime praticado pela mãe ou por outra pessoa, matando o feto (ser humano que ainda não respirou, não possui vida extrauterina). Se houver aborto culposo, nossa lei sequer considera como crime e, se considerasse, não seria julgado pelo Júri, já que só os dolosos é que o são.

São estes os quatro crimes que, quando praticados de forma dolosa, serão julgados no Júri, nenhum mais. Inclusive, ressaltamos que até a forma tentada será julgada no Júri. Ou seja, se João tentou matar Marcos, mas errou o tiro, irá para o Júri e lá será julgado pela tentativa de homicídio.

Por fim, sempre surge a dúvida quanto ao chamado "latrocínio". Em primeiro lugar, é interessante saber que o termo "latrocínio" não é previsto em nossa legislação, não é um termo técnico. Mas, tudo bem se você o utilizar, não estará errado. Apenas saiba que, tecnicamente, o termo é "roubo seguido de morte". Este crime, como seu nome sugere, ocorre quando, num contexto de roubo, e para fins do cometimento do roubo, o assaltante mata a vítima. É o já conhecido caso daquele que, ao ser assaltado, entra em briga com o assaltante e por ele é assassinado.

A pergunta é: o latrocínio será julgado pelo Júri? Não. Por quê? Porque este é um crime que está elencado entre os "crimes contra o patrimônio", não está elencado no Código Penal entre os "crimes contra a vida". O Código Penal divide seus crimes de acordo com o valor social que é protegido: vida, patrimônio, integridade física, honra, dignidade sexual etc. São os chamados "bens jurídico-penais". No latrocínio, a morte ocorre em razão e por decorrência do roubo. Considerou o legislador que, neste caso, o bem jurídico-penal visado pelo criminoso, em primeiro lugar, é o patrimônio da vítima, logo, trata-se de um crime contra o patrimônio ou, melhor, um crime predominantemente contra o patrimônio. Se acertou ou errou o legislador, há que se analisar; o certo é que, por não estar previsto como "crime contra a vida", não poderá ser julgado pelo Júri, em vista do art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição, acima citado.

O Júri é, certamente, um dos procedimentos mais detalhados de todo o sistema jurídico brasileiro. Assim, o leitor poderá encontrar exceções a uma ou outra regra aqui exposta, e elas podem ser vistas nos artigos 406 a 497 do Código de Processo Penal, para aquele que quiser se aprofundar no assunto.