Vendedor Ambulante, Contrafação de Mídias e Acumulação: a discrepância de um fundamento

25/11/2021

Autor: Marcel Figueiredo Gonçalves.

Categoria: artigo.

Local de publicação: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (v. 209, p. 6-7, 2010) e Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal (v. 11, p. 234-237, 2010).


Seja em uma pequena, média ou grande cidade brasileira, um fato corriqueiro e já intrínseco ao cotidiano é percebido e vivido por todos: a presença de vendedores ambulantes de mídias contrafeitas (CD´s e DVD´s).

Uma estatística recente é trazida pelo Ministério da Justiça, através do órgão oficial responsável pelo combate à pirataria no Brasil (Conselho Nacional de Combate à Pirataria - CNCP). Nela, constatou-se que, no ano de 2008, houve uma majoritária quantidade de denúncias (30,13%) para a atividade do vendedor ambulante, comparando-se com o camelódromo, locadoras etc. Dentro dessa porcentagem, pode-se perceber uma quantidade surpreendente de CD´s e DVD´s contrafeitos.[1]

Assim, constatada tal situação empírica (propositadamente de forma sintética), façamos uma análise dogmático-penal sobre um fundamento possível, mas equivocado, que busca legitimar a incriminação da referida conduta: a acumulação danosa da contrafação de mídias.

Sabido é que a conduta de contrafação se refere ao "contrafazer", "copiar", "reproduzir", de forma a "atingir" o direito do autor, em decorrência de não ter havido a autorização para tanto. É o que sugere o art. 184 do Código Penal, especificamente os parágrafos 1º e 2º, dependendo a tipificação do caso concreto. Não nos referimos, portanto, ao plágio, que seria, em palavras rápidas, a conduta de afirmar publicamente que é sua uma obra intelectual de terceiro. Nesse último caso há, efetivamente, um ataque à faceta moral do direito do autor.

São claras as palavras de Túlio Lima Vianna quando trata do assunto: "Se é certo o interesse jurídico na tutela penal dos direitos morais do autor, a tutela penal dos direitos patrimoniais é bastante controversa. Há um interesse individual e social em se tutelar a autenticidade de uma obra, bem como sua integridade. Não só é de interesse de Picasso que o público saiba que Guernica foi pintado por ele, mas também é de interesse do público e de historiadores da arte ter conhecimento de que aquela obra provém das mãos deste artista. Da mesma forma, é do interesse não só do autor, mas do público, que a pintura permaneça no tom monocromático, adequado ao tema, e que ninguém a modifique com detalhes em dourado".[2]

Assim, a conduta do vendedor ambulante que, em regra, copia fielmente a obra do autor ou intérprete, jamais poderia ser enquadrada como contrafação que atinge o direito extra-patrimonial ou moral do autor, pois "não há qualquer interesse jurídico do autor em evitar a reprodução de sua obra, muito pelo contrário, quanto mais seu "trabalho intelectual" for divulgado, maior prestígio social ele ganhará".[3] Dessa forma, restaria como fundamento da proibição jurídico-penal da venda ambulante apenas o lado patrimonial do direito do autor, ou seja, o direito de usufruir da obra da maneira que lhe convir. Além de tal argumentação, há aquela referente ao prejuízo estatal na arrecadação de impostos, falando-se em cifras de milhões de reais não encaminhados aos cofres públicos em decorrência de tal atividade, dentre outras de pirataria.

Contudo, a venda ou o "expor à venda" de um CD ou DVD (ou mesmo alguns), por parte do ambulante, não poderia ser qualificada como apta, suficiente ou idônea para lesionar o patrimônio do autor ou causar prejuízo ao Estado, chegando-se ao ponto de se proteger a necessidade da intervenção penal. Tal lesividade só ocorreria quando da soma ou acumulação das mesmas condutas por parte de terceiras pessoas, ou seja, o autor e o Estado só serão lesionados quando diversas pessoas também praticarem a venda ambulante. Seriam os chamados "delitos cumulativos".

Apenas como noção geral, sabe-se que tal qualificação doutrinária, surgida com Lothar Kuhlen[4], é dirigida para os bens supra-individuais (meio ambiente, por exemplo). Não sendo possível, para tais bens, se verificar uma ameaça séria de lesão com uma única conduta humana (como o caso do corte de uma única árvore), justificar-se-ia a intervenção penal a partir da noção de que, sendo aquela praticada por diversas pessoas, haveria um efetivo dano ao bem jurídico-penal protegido.

Num Direito Penal do fato isoladamente considerado, sabido é que tal fundamentação não encontra respaldo na Constituição democrática. Isso porque, em síntese, o autor estaria respondendo por condutas realizadas não só por ele (ferindo-se o juízo de reprovação individual da conduta, ou seja, a culpabilidade); não há lesividade da conduta quando analisada em seu contexto único (ferindo-se a ofensividade); por fim, não há que se falar em proporcionalidade em sentido estrito, pois a aplicação de uma pena a uma conduta isoladamente irrelevante seria desproporcional para aquilo que o autor fizera, isto é, a venda de algumas mídias.[5]

Contudo, e mesmo se querendo aceitar a fundamentação da acumulação como legítima, assim como a existência da chamada "propriedade intelectual", o raciocínio lógico-abstrato, no que se refere ao direito patrimonial do autor, já encontraria um erro crasso: a fundamentação da acumulação se refere a bens supra-individuais, não pessoais. O direito patrimonial do autor, também previsto no art. 5º da Constituição Federal, seria um direito individual pertencente - única e exclusivamente - ao autor da obra ou daqueles que detém tais direitos sobre a mesma.[6]

Assim sendo e, em não se constatando o descumprimento dos direitos morais do autor (a mídia vendida é, em regra, mantida com seu conteúdo intacto), a justificativa de que se deve incriminar a conduta do vendedor ambulante por atingir o patrimônio individual do autor ou os cofres públicos, só encontraria respaldo na idéia da soma ou acumulação danosa de condutas. Tal justificativa não pode ser aceita pelos dois motivos agora expostos: 1º) a acumulação, como categoria dogmática que tenta legitimar a incriminação de condutas, não encontra respaldo na Constituição; 2º) em ambos os casos (direito patrimonial e cofres públicos), haveria um erro lógico no raciocínio para tal justificação, pois é a idéia de acumulação dirigida para os bens que não podem ser lesionados com uma única conduta, os bens supra-individuais. Aceitando-se ou não a ideologia da propriedade intelectual, o bem jurídico-penal aí protegido é o direito patrimonial do autor, não a tributação estatal, sendo essa última "apenas" afetada pela lesão ao bem autoral.

Num Direito Penal que se diz protetor de bens jurídicos fundamentais, funcionando esses como critérios limitadores da ação repressora estatal, não se poderia admitir uma justificativa de fuga dos mesmos. E, ainda, querendo-se justificar a incriminação com base no não pagamento do tributo (aí havendo um bem jurídico certo e determinado), cairíamos novamente na ilegitimidade dos delitos cumulativos: culpa, ofensa e proporção.

Concluindo, tem-se pregado - seja por parte do Governo, dos meios de comunicação ou das organizações não-governamentais (respaldados por interesses econômicos diversos) - a justificativa da incriminação da conduta de contrafação do vendedor ambulante com uma base já ilegítima, os delitos cumulativos. Tem-se pregado tal justificativa com argumentos lógico-abstratos equivocados, uma discrepância da teoria da acumulação de condutas. Em português claro, há aí um fundamento, no mínimo, pirata.

BIBLIOGRAFIA:

BORGES FILHO, Antonio; GONÇALVES, Marcio Cunha Guimarães. In: Brasil original: compre essa atitude. Publicação desenvolvida pelo Ministério da Justiça - Conselho Nacional de Combate à Pirataria - CNCP.

GUIRAO, Rafael Alcácer. La protección del futuro y los daños cumulativos. Anuario de derecho penal y ciencias penales. Editado por: Ministerio de Justicia (Centro de Publicaciones) y Boletín Oficial del Estado. Madrid, 2003. t. LIV.

SILVA DIAS, Augusto. "What if everybody did it?": sobre a "(in)capacidade de ressonância" do direito penal à figura da acumulação. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, a. 13, n. 3, jul/set. 2003, Coimbra Editora.

VIANNA, Túlio Lima. A ideologia da propriedade intelectual: a inconstitucionalidade da tutela penal dos direitos patrimoniais de autor. Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano. Berlin-Uruguai: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2006.


REFERÊNCIAS:

[1] Para mais detalhes ver: BORGES FILHO, Antonio; GONÇALVES, Marcio Cunha Guimarães. In:Brasil original: compre essa atitude. Publicação desenvolvida pelo Ministério da Justiça - Conselho Nacional de Combate à Pirataria - CNCP, p. 145 et. seq.

[2] VIANNA, Túlio Lima. A ideologia da propriedade intelectual: a inconstitucionalidade da tutela penal dos direitos patrimoniais de autor. Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano. Berlin-Uruguai: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2006, p. 944.

[3] Ibidem.

[4] SILVA DIAS, Augusto. "What if everybody did it?": sobre a "(in)capacidade de ressonância" do direito penal à figura da acumulação. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, a. 13, n. 3, jul/set. 2003, Coimbra Editora, p. 307. O autor se refere aos escritos de KUHLEN, Lothar. "Der Handlungserfolg der strafbaren Gewässerunreinigung (§324 StGB)", in GA, ano 133 (1986), p. 389 et. seq. e "Umweltstrafrecht - auf der Suche nach einer neuen Dogmatik", in ZStW 105 (1993), p. 697 et. seq.

[5] Para mais detalhes sobre a ilegitimidade dos delitos cumulativos ver, além do agora citado artigo de Augusto Silva Dias, GUIRAO, Rafael Alcácer. La protección del futuro y los daños cumulativos. Anuario de derecho penal y ciencias penales. Editado por: Ministerio de Justicia (Centro de Publicaciones) y Boletín Oficial del Estado. Madrid, 2003. t. LIV. O autor espanhol se refere mais especificamente aos danos cumulativos em matéria ambiental.

[6] Não se ignora que há, efetivamente, o interesse das grandes produtoras na manutenção do direito de reprodução da obra. Contudo, mesmo nesses casos, não há que se falar em bem jurídico supra-individual ou coletivo, pois haveria aí a determinação estrita e certa de quem é o titular do bem jurídico, o que não ocorre nos bens supra-individuais. Há que se acrescentar, também, que parte dos manuais defende que os crimes do art. 184 são formais, não havendo a necessidade de se aferir a lesão ao patrimônio do autor para que ocorra a subsunção. Contudo, não verificada a lesão ao lado extrapatrimonial (frisa-se que os vendedores ambulantes mantêm a obra intacta, até para conseguirem o sucesso na venda, em regra) é perfeitamente possível que o operador do Direito leve em consideração o quanto deixou o autor de lucrar, uma vez que o patrimônio é substancial/material, sendo absolutamente viável se pensar em significância ou não da (futura) lesão. Inobstante a isso, e antes de se chegar à análise da referida significância, há que se pensar que a presunção de que o comprador da mídia adquiriria o produto "original", caso não comprasse a cópia, tem como base, até o momento, um argumento baseado no "achismo empírico-científico".